Ai que vida de cachorro…

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Eu morava desde filhote com minha mãe, meus irmãos e uma senhora muito bondosa, chamada Benê. Dona Benê nos amava muito, e me chamou de Pelézinho, sabe-se lá por que. Ela me dava carinho, comida, separava as brigas dos nossos irmãos. Era tão bondosa com a gente que seu filho, Naldo, achava estranho. “Que absurdo tratar tão bem esse bando de vira-latas!”, ele dizia. Nem preciso falar que eu detestava esse cara, e fazia questão de latir muito nas raras vezes em que ele aparecia.

Em uma manhã quarta-feira, quando nós tirávamos nossa soneca no quintal esperando Dona Benê chegar da feira, algo parecia estranho. Eu sempre fui muito ansioso, pulava de alegria quando ela chegava com aquela sacola cheia de frutas. Não por causa das frutas, mas porque eu adorava quando a Dona Benê chegava. E eu sempre ganhava um cafuné e um sorriso da minha querida dona. Mas enfim, naquele dia ela estava demorando muito. Muito mesmo.

A noite chegou e nada dela aparecer. Eu estava com fome, e tinha feito cocô perto da porta da casa, porque tinha passado da hora em que ela nos levava para passear. E nada de Dona Benê.

No dia seguinte, quem apareceu foi o chato do Naldo, com sua esposa tão chata quanto ele, os dois vestidos de preto.

– Amor, pega uma roupa da mãe, enquanto eu levo os cachorros para ficar com a Célia… com a dona Benê falecida, só a Célia mesmo para aguentar esses bichos.

– Você vai levar todos para ela?

– Não, ela só quer os bonitinhos. O pretinho eu dou um jeito.

Logo pensei se o pretinho era eu, e fiquei muito triste. Por que eu não era bonitinho como os outros? Dona Benê gostava de mim… por que a tal da Célia não me quis? Não sou fofinho o suficiente? Só porque eu parecia mais com meu pai do que com minha mãe? Fiquei bravo.

Naldo colocou as guias em todos, menos em mim. E levou todos embora andando, menos eu.

Alguns minutos depois ele voltou, desta vez de carro. Abriu o portão da frente e a porta do veículo, dizendo:

– Entra.

Fiz o que ele mandou, e andamos por um bom tempo até chegar em um parque, onde ele abriu a porta e me falou para descer. Pensei que íamos passear, já fui logo fazendo xixi em vários arbustos. Quando me virei, nem ele nem o carro estavam mais lá.

Foi aí que eu entendi. Eu não era bonitinho e por isso tinha sido largado ali. Sozinho e desamparado. Que raiva! E… que fome! Fiz o maior esforço para fazer cara de coitado para uma mocinha que comia um cachorro-quente (quem pensou nesse nome idiota para uma comida tão gostosa??) e ela me deu um pedaço.

Vivi nessa toada por algum tempo, pegando pedaços dos salgados alheios até que uma moça de cabelo ruivo e óculos gigantes me pegou e me levou para a casa dela. Mas não ficamos juntos muito tempo – parece que ela colocou minha foto no “feici” (seja lá o que isso for) e alguém me quis.

Desde então vivo feliz com a Sofia, uma menininha que me amou muito, e a família dela. Acho que nela eu posso confiar – ela é tão pequenininha, e me dá tanto carinho! Mas até hoje eu morro de medo de entrar em qualquer automóvel.