A morte não curtiu

3

Numa noite sem lua de uma sexta-feira em 2006, Felipe dorme sem saber do estranho encontro que teria assim que o relógio marcasse zero hora. No momento da virada de data, as cortinas de seu quarto de moleque balançam com um vento frio que não deveria estar lá. A janela está fechada e tem grades; moramos em São Paulo, sua mãe dizia, não na Suécia. Nada de janela aberta. E se alguém entrasse para pegar seu computador ou seu iPod genérico da Santa Efigênia?

Indiferente a tudo, ele seguia sonhando com a Emanuelle… Felipe sempre amou a Emanuelle. Um dia, quem sabe, ele poderia se encontrar com ela – ou melhor, com atriz que a interpretava na Tv e em seus sonhos adolescentes.

A janela se abriu sem fazer ruído, e alguém passou por ela. Se sua mãe tivesse visto, teria gritado e tentado proteger Felipe. Ela sempre tentava proteger seu menininho de 17 anos. Proteger de qualquer coisa – mesmo das coisas boas, ele pensava.

Porém a pessoa que passou pela janela não era coisa boa. Tinha corpo de mulher, mas não era a Emanuelle, como Felipe sonhava. Era uma mulher diferente. Uma mulher cheia de vingança.

Felipe sentiu os longos cabelos lisos da estranha roçarem seu rosto. Fazia sentido com seu sonho, e ele não acordou. E ainda suspirou:

– Ah, Emanuelle!

A estranha de pele muito branca, vestido longo branco e cabelos negros quase tão longos quanto, decidiu acordar Felipe dando um tapa na cara dele.

– Ahhh!!! Mas o qu…

Não terminou a sentença. Ela segurou sua boca e mandou que se calasse. Sua voz era quase um sussurro gutural. Seu rosto e braços tinham cicatrizes que pareciam feitas por arame farpado.

– Você não compartilhou, Felipe. Eu sei que não.

Confuso, Felipe apenas observou a estranha criatura.

– Você leu, Felipe. Você leu até o final. Você soube o que aconteceu comigo. Você não compartilhou.

A mulher removeu a mão que segurava a boca de Felipe a colocou, junto com a outra, no pescoço do adolescente. Felipe mal conseguia respirar, mas ela ainda não o estava estrangulando para que morresse. Ela ainda tinha muito a dizer.

– Eu sou Samara. Você leu a minha história. Você leu.

Samara começou a apertar mais forte a garganta do rapaz. Felipe engasgava tentando descobrir o que ele tinha lido que teria afetado aquela mulher. Piadas? Os livros da Fuvest?

– Estava numa comunidade – ela disse – Estava lá no Orkut, que você entra para ver cinco vezes por dia. Estava tudo lá. Como eu gostava de andar de bicicleta em Cascavel. Como caí no arame farpado. Como o dono do lote ficou rindo me vendo agonizar. Você leu. Leu tudo. Era para mandar para 20 comunidades. Para salvar minha alma. Você não quis. Agora vai pagar pelo seu egoísmo.

Samara soltou as mãos do pescoço de Felipe. Aliviado e tossindo, recém caído no chão do quarto, o rapaz não percebeu que o cabelo da moça crescia. Crescia tanto, aliás, que suas ondas começaram a cobrir o piso de madeira e os cobertores da cama. Logo tudo parecia com um enorme tapete peludo, um breu de fios que consumia o quarto.

O cabelo de Samara era uma arma. Qualquer um perceberia isso. Mas Felipe estava muito ocupado tentando respirar para notar quando os longos e negros fios o envolveram. Eles não eram macios, como era de se esperar; sua textura lembrava o arame em que a vingativa moça teria sido morta. Aquele cabelo todo o engoliu. Quem abrisse a porta, naquele momento, não veria mais Felipe, apenas uma mulher fantasmagórica e cabeluda.

Ela não ficou tão cabeluda por muito tempo. O cabelo logo se retraiu para o tamanho original, mas Felipe não voltou a aparecer.

Samara riu.

– Esse foi rápido. Quem será o próximo? – perguntou, enquanto retirava um papel de debaixo da saia do alvo vestido. Leu seu conteúdo em silêncio, depois resmungou – Mariana, IP 129.321.14.14. Você também não compartilhou.

E desapareceu no ar, à procura de sua próxima vítima.

Ossos de Évora

6

[Esse conto se passa na cidade de Évora, Portugal]

– Eu não devia ter aceitado vir conversar contigo, Miguel!
– Eu mudei, Rita. Volte a ser minha, por favor. Tratar-te-ei como a uma rainha, promessa.
– Não acreditarei em ti novamente. Por favor pare de perturbar-me, pare de seguir-me aonde quer que vou!

No dia anterior, em uma pequena casa com aspecto de abandono na parte sul de Évora, um assustado Miguel bate à porta quase apodrecida de onde pende uma placa com os dizeres “Amarração para o amor. Trago a pessoa amada em até dois dias. Especializada em casos ditos impossíveis”.

Os olhos castanhos do rapaz tremularam, esperançosos. Miguel tentara dezenas de cartomantes em quase toda Portugal antes de bater à porta de Madame Selina, tida como uma maligna bruxa, a mais assustadora de toda Évora. Talvez ele tivesse tanto medo quanto o resto das pessoas do bairro, pois tentara videntes bem longe dali antes de bater à porta da Madame de sua própria cidade.

O medo, no entanto, não dura muito para quem está em um insano furor como o rapaz. Miguel sonhava em ter novamente Rita em suas mãos desde que a moça o havia deixado, meses antes. Seguia-a onde fosse, ameaçava-a para que reatassem o relacionamento, mas nada funcionava. Rita sabia que o coração do rapaz era bem mais maligno do que seus cabelos louros e angelicais faziam pensar, e fugia dele.

– Entre logo – disse a cartomante com um sotaque estranho, como de uma estrangeira que houvesse aprendido a falar português nos rincões do Brasil.Sei o que veio fazer aqui – continuou a bruxa, enquanto Miguel sentava-se de frente para a velha senhora em sua escrivaninha decrépita. Nenhuma magia foi capaz de trazer sua mulher de volta, não é? Pois a minha consegue.

– Madame, se Rita não voltar a ser minha, não será de mais ninguém.

A cartomante silenciou-o por um momento, saindo da sala, e retornando com uma caixa cheia de retratos e papéis. Ao colocá-los sobre a mesa, Miguel percebeu que algumas fotos eram de pessoas especialmente malignas, principalmente de nazistas, enquanto outros papéis eram desenhos infantis de monstros. Selina possuía o dom da magia negra, e invocava o auxílio dos piores seres do inferno que já haviam se mostrado no mundo terreno.

Madame disse algumas palavras em uma língua estranha, que poderia ser o idioma das cobras caso elas tivessem o dom de falar. Entrando num frenesi de possessão, os olhos giravam de suas órbitas enquanto sua saliva fermentava para fora dos lábios cerrados. De repente seus olhos pararam de girar, e ela disse com uma voz macabra:

capela ossos evora

Capela dos Ossos, Évora – Portugal

– Sim, vamos ajudá-lo, és tão mau como todos nós… mas uma troca é necessária. Oh sim, é necessária. Vais ajudar-nos e lhe ajudaremos. Rita será sua. Pois oiça, vá à Capela dos Ossos com Rita amanhã à meia-noite. Leve 45 capuzes negros. Tu deverás possuí-la dentro da capela, depois de falar as palavras que Madame escreverá para ti…

Selina girou a cabeça para os lados e seu rosto voltou ao normal. Cobrou dez euros por cada capuz. Para a sorte de Miguel, todos os 45 deles já se encontravam no escritório da bruxa, que escreveu as sinistras palavras a lápis em uma folha negra de papel.

No dia seguinte, Miguel convenceu Rita a ir com ele, à noite, a um bar da cidade. Disse a ela que seria a última vez, que nunca mais a incomodaria se a moça lhe concedesse a chance de uma última conversa. Sentaram-se em uma mesa na calçada.

Fingindo ser desastrado, o maligno rapaz derramou cerveja na camiseta de Rita, que teve de levantar para limpá-la no banheiro. Ao retornar, a moça não percebeu que seu refrigerante estava maculado com um fortíssimo calmante. Logo Rita estava como que desmaiada, sendo levada de carro à Capela dos Ossos.

O denso negrume da noite tornava o local ainda mais assustador. Milhares de ossos humanos revestiam as paredes da igreja, milhares de crânios envoltos pela escuridão observavam Miguel enquanto ele falava as palavras mágicas, arrancando as roupas de Rita e possuindo a moça desacordada ali mesmo. Quando terminou, satisfeito, olhou para as caveiras com ar debochado. Desta vez havia realizado um ritual realmente poderoso.

Enganado pela noite profunda, o rapaz não notou que um pequeno ossinho se descolava da parede. Depois outro. E outro. Quando ele finalmente notou o ruído, um a um, ossos inteiros, pedaços e crânios caíam ao chão, alguns com estrondo. Os ossos que caíram em Miguel, ele os afastou, enojado. As peças de esqueletos que caíam em Rita, porém, ele não movia.

Rapidamente as paredes da famosa capela de Évora estavam nuas. Seu piso já não se podia mais ver, tantas eram os ossos que se espalhavam sobre o chão e também sobre o corpo da mulher que ele tanto desejava.

Subitamente os ossos começaram a tremular, como se alguma força chacoalhasse o chão. Ossos de pernas vibravam até chegar a ossos de bacias, e se juntavam. Ossos de braços se uniam aos de antebraços, depois aos de tórax. Rapidamente formavam-se esqueletos que eram capazes de ficar em pé.

Um deles caminhou até bem perto de Miguel, que a esta altura estava tomado de terror. Com voz macabra e cadavérica a caveira perguntou a ele onde estavam os capuzes.

Assustado, o rapaz teve forças apenas para apontar para o altar onde havia colocado as capas mais cedo. Com esse conhecimento, os esqueletos caminharam, devagar, até lá e pegaram cada um o seu capuz. Devidamente vestidas, as estranhas criaturas de ossos saíram da capela e sumiram na noite.

Em choque pelo terror, Miguel perdeu a consciência. Quando acordou, já era dia e o sol permitia que o interior do local recebesse alguma iluminação. Todos os ossos pareciam de volta às paredes, a igreja parecia pronta para receber turistas novamente. Talvez tivesse sido um sonho, pensou.

Com a luz, Rita também acordou. O rapaz esperava por uma bronca, como ela lhe dava toda vez que se encontravam depois da separação. Essa seria ainda pior, já que ela não devia se lembrar de como havia chegado ali. As primeiras palavras da moça ao acordar, no entanto, foram: “Eu te amo, Miguel”.

O início

0

– Filho, sai dessa vida, por favor! Você não sabe o que tem aí nessa pedra, já se drogou demais. Felipe, me ouça! Essa coisa não é como as outras que você cheirava, ninguém sabe quais são os efeitos, você pode morrer, filho! Você já vendeu quase tudo o que tinha nessa casa para comprar isso, chega, por favor, me escuta!

Eu estava desesperada, mas Felipe apenas grunhiu e entrou no quarto, batendo a porta com estrondo. Eu sabia que de lá ele só sairia quando acabasse de consumir toda a droga, e os efeitos da abstinência o fizessem me procurar, como sempre acontecia.
Por quê, meu Deus? Por quê criaram mais uma droga horrível dessas? Logo quando meu filho estava começando a pensar em deixar o crack… Tantas vezes fui buscá-lo no meio da Cracolândia, tantas vezes… E quando eu achava que iria conseguir que ele aceitasse o tratamento, apareceu essa tal de “novinha”, essa droga de que nem os médicos entendiam os efeitos.

Sentada no sofá, deixei as lágrimas fluirem como ácido no meu rosto, corroendo as poucas esperanças que eu tinha de salvar meu filho. A dor pulsava no meu coração e eu queria morrer. Mas não podia, não, tinha o Felipe, precisava salvá-lo. Eu mereço, mereço isso, fui uma péssima mãe, eu não sabia…

O relógio marcava meia-noite e um, mas eu sabia que não iria dormir hoje. Que data terrível, 6 do 6…

– Aaaaargh!!!

Felipe, não, que grito foi esse, o que aconteceu com meu menino?

– Filho! O que aconteceu? Abre essa porta! Mamãe está aqui!

O desespero tomou conta do meu coração. Meu filho estava morrendo, eu sentia isso, precisava ajudá-lo, Felipe, meu pequeno Felipe… Bati na porta com toda a força que tinha, mas não consegui arrombá-la. Ele devia ter colocado a cômoda na frente, ou uma cadeira, ou… não, não, preciso conseguir! Gritei o nome dele muitas e muitas vezes enquanto batia na porta, o cachorro latia, sem entender, batia as patinhas na porta junto comigo…

Bati sem parar até que a tranca girou. Que bom, eu poderia ajudá-lo, levar no hospital, salvar o meu Felipe… A porta abriu lentamente, eu já estava me sentindo aliviada, quando percebi que os olhos do meu menino estavam diferentes, ainda mais perversos, vermelhos e enfurecidos do que quando estava numa noia normal.

Até que percebi que a pele dele também estava estranha. Pedaços do seu rosto estavam caindo, os braços cheios de feridas profundas, já enegrecidas, enquanto manchas de sangue seco coloriam a pele branca. Como isso foi acontecer, meu Deus? Felipe, o que aconteceu com você?

Afastei-me da porta, assustada e confusa, até que ele parou de me olhar por um segundo, percebendo o cachorro a seus pés. O que ele fez depois foi tão terrível que eu nem consigo compreender. Saí correndo do apartamento enquanto ele devorava o ser indefeso, seus olhos brutais e famintos. Se ele conseguia devorar, vivo, o cachorrinho da família, o que faria comigo? Não era mais o meu filho…

Desci correndo as escadas de emergência, na esperança de que o cão o atrasasse o suficiente. Pobre Felipe, que mãe horrível eu fui… Corre, Matilde, corre, foge do filho que você gerou e que a droga levou… Só mais três andares para descer… corre…
Térreo, finalmente. Ofegante, abri a porta para a rua e não acreditei no que vi. Centenas de pessoas na rua estavam exatamente como o meu filho, o mesmo aspecto, a mesma ânsia. Todos eram zumbis.

Observei enquanto as criaturas perseguiam e devoravam um grupo de jovens que tomava cerveja no bar da rua. Sangue, braços, pernas, pedaços de pele disforme dos adolescentes jaziam na calçada, mas a fome dos monstros não era aplacada nunca.
Um pé feminino, em um All-Star azul, caiu ao lado do meu, manchando-o de sangue. Era o fim, compreendi.

Ai que vida de cachorro…

1

Eu morava desde filhote com minha mãe, meus irmãos e uma senhora muito bondosa, chamada Benê. Dona Benê nos amava muito, e me chamou de Pelézinho, sabe-se lá por que. Ela me dava carinho, comida, separava as brigas dos nossos irmãos. Era tão bondosa com a gente que seu filho, Naldo, achava estranho. “Que absurdo tratar tão bem esse bando de vira-latas!”, ele dizia. Nem preciso falar que eu detestava esse cara, e fazia questão de latir muito nas raras vezes em que ele aparecia.

Em uma manhã quarta-feira, quando nós tirávamos nossa soneca no quintal esperando Dona Benê chegar da feira, algo parecia estranho. Eu sempre fui muito ansioso, pulava de alegria quando ela chegava com aquela sacola cheia de frutas. Não por causa das frutas, mas porque eu adorava quando a Dona Benê chegava. E eu sempre ganhava um cafuné e um sorriso da minha querida dona. Mas enfim, naquele dia ela estava demorando muito. Muito mesmo.

A noite chegou e nada dela aparecer. Eu estava com fome, e tinha feito cocô perto da porta da casa, porque tinha passado da hora em que ela nos levava para passear. E nada de Dona Benê.

No dia seguinte, quem apareceu foi o chato do Naldo, com sua esposa tão chata quanto ele, os dois vestidos de preto.

– Amor, pega uma roupa da mãe, enquanto eu levo os cachorros para ficar com a Célia… com a dona Benê falecida, só a Célia mesmo para aguentar esses bichos.

– Você vai levar todos para ela?

– Não, ela só quer os bonitinhos. O pretinho eu dou um jeito.

Logo pensei se o pretinho era eu, e fiquei muito triste. Por que eu não era bonitinho como os outros? Dona Benê gostava de mim… por que a tal da Célia não me quis? Não sou fofinho o suficiente? Só porque eu parecia mais com meu pai do que com minha mãe? Fiquei bravo.

Naldo colocou as guias em todos, menos em mim. E levou todos embora andando, menos eu.

Alguns minutos depois ele voltou, desta vez de carro. Abriu o portão da frente e a porta do veículo, dizendo:

– Entra.

Fiz o que ele mandou, e andamos por um bom tempo até chegar em um parque, onde ele abriu a porta e me falou para descer. Pensei que íamos passear, já fui logo fazendo xixi em vários arbustos. Quando me virei, nem ele nem o carro estavam mais lá.

Foi aí que eu entendi. Eu não era bonitinho e por isso tinha sido largado ali. Sozinho e desamparado. Que raiva! E… que fome! Fiz o maior esforço para fazer cara de coitado para uma mocinha que comia um cachorro-quente (quem pensou nesse nome idiota para uma comida tão gostosa??) e ela me deu um pedaço.

Vivi nessa toada por algum tempo, pegando pedaços dos salgados alheios até que uma moça de cabelo ruivo e óculos gigantes me pegou e me levou para a casa dela. Mas não ficamos juntos muito tempo – parece que ela colocou minha foto no “feici” (seja lá o que isso for) e alguém me quis.

Desde então vivo feliz com a Sofia, uma menininha que me amou muito, e a família dela. Acho que nela eu posso confiar – ela é tão pequenininha, e me dá tanto carinho! Mas até hoje eu morro de medo de entrar em qualquer automóvel.

O estranho caso da Loira do Banheiro

9

Em 15 anos de polícia eu nunca tinha visto algo parecido. Três jovens corpos sem vida, duas garotas e um rapaz, largados no chão do banheiro feminino de um dos colégios mais tradicionais de São Paulo. Seus olhos estavam negros como se alguma tinta tivesse estourado dentro deles – não havia qualquer vestígio do branco que envolve a íris. Os cadáveres também tinham um aspecto diferente, que eu só conseguia definir como “petrificado”.

Ateia desde os 15 anos, não consegui, a princípio, entender a sensação de sobrenatural que essa cena me trazia. Eu já havia trabalhado para conter os tumultos durante o evento que ficou conhecido como uma infestação de zumbis na cidade, mas naquele momento o que chamavam de zumbis eram apenas pessoas comuns, infectadas pelo que no início se encarava apenas como uma nova droga.

Gerson, colega de profissão e de várias cenas de crime, brincou com a localização dos cadáveres:

– Deve ter sido a loira do banheiro!

Mal sabia ele que sua brincadeira tinha um pouquinho de verdade.

Após a retirada dos cadáveres e o início do trabalho dos peritos, Gerson e eu afastamos os curiosos estudantes que cercavam a cena, cada um mais assustado que o outro, celulares em punho para compartilhar as fotos mais macabras que conseguissem no Facebook. Assim, voltamos ao escritório para continuar a burocrática tarefa de analisar os processos que se acumulavam sobre nossas mesas.

Tentei esquecer o caso dos adolescentes e me concentrar no processo de um rapaz suspeito de matar sua esposa, mas não funcionou. Cada página que eu virava fazia aparecer três jovens corpos petrificados, três olhos enegrecidos, três faces aterrorizadas.

Dois dias depois recebi um telefonema com uma informação intrigante. Mais dois adolescentes haviam sido encontrados mortos no sanitário (masculino, desta vez) de uma escola tradicional. Não podia ser coincidência. E não era.

Fiz questão de acompanhar o trabalho da perícia nessa nova e macabra ocorrência. Ao chegar no sanitário, a semelhança com a cena anterior me arrebatou. Os olhos dos cadáveres também estavam negros como se a íris tivesse escorrido tinta, seus corpos também como que petrificados. Notei que tanto esses garotos como os assassinados da outra vez eram incrivelmente bonitos. Modelos, talvez. Atores da “Malhação” petrificados.

Primeiro pensei que deveria ser o rigor mortis de alguma forma antecipado. Talvez eles tivessem sido assassinados em outro local e transportados para lá. Ou combinado de se suicidar de alguma forma ainda desconhecida das autoridades. Até um anime em que as pessoas morrem após terem seus nomes escritos num caderno passou pela minha mente.

Fiquei absorta nessas diversas conjecturas até que um dos peritos me chamou para a realidade. Ele havia encontrado, atrás do vaso sanitário, um bracelete de ouro com uma cobra entalhada.

Não era algo que estivesse na moda. Pelo contrário, parecia ser antigo, algo grego. E definitivamente não combinava com as joias que os meninos ricos costumavam usar. Talvez fosse um presente que um estudante tivesse comprado. De qualquer forma, fotografei a peça.

Assim como da última vez foi preciso afastar os estudantes e seus onipresentes celulares para deixar a cena do crime. Assim que chegamos à delegacia voltamos para o trabalho burocrático, para nossa montanha de papeis que transfigurava sórdidas violências em milhares de palavras e documentos.

No dia seguinte uma ligação telefônica nos surpreendeu. Duas adolescentes mortas em um colégio. Onde o corpos foram encontrados? No sanitário feminino, disse o oficial.

Corri para a cena do crime, meu orgulho ferido com esse possível serial killer cujos métodos eu não podia desvendar. Novamente os cadáveres estavam petrificados. Duas lindas meninas com olhos manchados de preto. Desta vez, além dos alunos e seus celulares vários repórteres se aglomeravam.

Testemunhas dos três casos foram ouvidas, mas ninguém tinha visto nada – apenas ouvido gritos terríveis após os estudantes mais belos e populares da turma terem entrado nos sanitários. Todas as ocorrências foram após o anoitecer.

Consegui autorização para colocar um oficial à paisana dentro de um sanitário de outro colégio, mais um daqueles de mensalidades bem caras e seleção de alunos bastante rigorosa que tanto atraem os ricos de São Paulo. Tinha certeza de que desta vez o caso seria desvendado.

Não foi. O oficial foi encontrado morto, petrificado junto com um jovem no banheiro.

Virei a noite pensando no caso. Adolescentes muito bonitos, de famílias ricas. Um bracelete. Sempre após o anoitecer. O que isso tinha em comum? Aparentemente nada.

Lembrei dos jovens curiosos e seus celulares. Quem sabe a internet me traria a resposta? Peguei a foto do bracelete e coloquei no Google Image Search, cética quanto ao resultado que isso traria. Mas me enganei. A busca me trouxe a um site de mitologia – um bracelete igualzinho àquele havia sido feito há muitos, muitos anos, como homenagem às Górgonas.

Górgonas. O que eu sabia sobre elas era restrito ao jogo God of War, que minha irmã adorava. Chequei a Wikipédia:

A Górgona (em grego: Γοργών ou Γοργώ; transl.: Gorgón ou Gorgó) é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino,[desambiguação necessária] e com grandes presas. Tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra (…)

Na mitologia grega tardia, dizia-se que existiam três górgonas: as três filhas de Fórcis e Ceto. Seus nomes eram Medusa, “a impetuosa”, Esteno, “a que oprime” e Euríale, “a que está ao largo”. Como a mãe, as górgonas eram extremamente belas e seus cabelos eram invejáveis; todavia, eram desregradas e sem escrúpulos. Isso causou a irritação dos demais deuses, principalmente de Atena, a deusa da sabedoria, que admirou-se de ver que a beleza das górgonas as fazia exatamente idênticas a ela.

Atena então, para não permitir que deusas iguais a ela mostrassem um comportamento maligno, tão diferente do seu, deformou-lhes a aparência, determinada a diferenciar-se (…) Atena condenou-as a transformar em pedra tudo aquilo que pudesse contemplar seus olhos. Assim, o belo olhar das górgonas se transformou em algo perigoso.

Será? Será que uma criatura mitológica teria aparecido num sanitário para se vingar de jovens bonitos? Impossível. O bracelete deve ter sido só coincidência. Faria mais sentido ser mesmo a Loira do Banheiro.

Tomei uma decisão radical. Eu ficaria no próximo sanitário de colégio chique esperando para saber o que aconteceria. Não tinha medo como o oficial designado da última vez. Alguém precisava solucionar esse caso.

Fiquei esperando do lado de fora do sanitário principal do colégio onde o próximo ataque seria mais provável, ao anoitecer do dia seguinte. Esperei, esperei… e nada. Até adormeci.

Acordei já de manhã e nada tinha acontecido. Nem ali nem em nenhum outro local da cidade. Retomei minha vigília na frente do mesmo banheiro, à hora do crepúsculo do dia seguinte. Os minutos passavam devagar, até que ouvi um grito.

– É agora! – Pensei.

Abri a porta do banheiro devagar. A imagem de um adolescente em processo de petrificação apareceu à minha frente. Olhei para o lado esquerdo e, acima da privada estava ela. Uma monstra de cabelos de cobra olhou para mim.

Tarde demais. Raios invisíveis saindo dos olhos dela me atingiram. A dor era lancinante. Senti meu corpo se tornar rígido até que não podia mais me mover. Meus olhos pareciam cobertos por uma sombra preta. Fui petrificada.

Minha alma deixou o corpo lentamente e a Górgona desapareceu.

Mas eu não deixaria a coisa acabar assim. Não mesmo. A gente ainda se encontra no além, criatura nojenta!

O nerd e a elfa

1

Na floresta de Nivewood viviam todo tipo de seres: animais, árvores, elfos, duendes, fadas e muitos outros que o povo do vilarejo próximo podia só imaginar, pois ninguém se atrevia a entrar lá.  Não porque as criaturas mágicas da floresta fossem essencialmente más ou especialmente assustadoras. Mas todas elas eram exóticas demais para se deixar contemplar pelos supersticiosos camponeses, cujo terror fazia-os correr como cavalos selvagens com qualquer ruído vindo das árvores.

Apenas alguns corajosos rapazes do povoado arriscavam andar por entre aquelas folhagens. Entre os fortes e destemidos do vilarejo, homens bravos como os antigos espartanos, não estava o jovem Heron. Apesar de ter a palavra “heroi” em inglês em seu nome, Heron não era bravo ou destemido. Mas gostava de entrar na floresta para poder ficar só com seus pensamentos. De alguma forma ele sentia a atmosfera mágica do lugar, sem que esta, no entanto, o amedrontasse. O jovem tinha mais medo daqueles de sua própria espécie.

Naquela manhã de quarta-feira, quando o sol banhava a campina e as árvores da floresta pareciam fazer cintilar cada uma de suas folhas, Heron estava deprimido. Mais uma vez os outros jovens a vila haviam zombado dele, mais uma vez riram de sua fraqueza ao carregar a lenha para o fogão da cozinha. Sua mãe, já idosa, precisava dele para esses serviços, e por isso ele não podia, naquele momento, sair correndo e se esconder como faziam as corujas da floresta. Mas como ele se sentia mal nessas ocasiões!

Depois de terminar o serviço Heron pôde se recolher à quietude mística das árvores, refúgio onde ele se sentia pertencer. Ao entrar na floresta, tudo que ele queria era sumir, se esconder de sua própria insignificância em um lugar onde as coisas parecessem ter um propósito maior. Com esse pensamento o rapaz andava, andava e andava mais um pouco por entre as árvores, até estar tão longe da entrada que ele próprio duvidava que soubesse voltar.

Heron estava tão cansado que decidiu sentar-se ao pé de um grande carvalho, onde adormeceu.  Durante o sono seus pensamentos iam e vinham, desconexos como pequenas borboletas sem rumo, coloridas e despreocupadas, e ele não percebia a passagem do tempo. Retomou a consciência depois de horas que lhe pareceram minutos, a imagem da floresta aparecendo aos poucos em seus olhos abertos, junto com um vulto cor-de-rosa bem próximo de seu rosto.

– Desculpe se te acordei.

A reação de Heron a esse contato inesperado foi semelhante à dos demais camponeses nessas situações: gritar e sair correndo em desespero, na maior velocidade que conseguisse atingir. Ao chegar quase no fim da floresta, ele parou, ofegante, com a falta de ar em seus pulmões. E, pela primeira vez depois desse contato inesperado, parou para pensar no que aconteceu: elfos (ou algo muito parecido com o que diziam ser os elfos nas histórias de fantasia) realmente existiam, e uma delas falou com ele!

Com a curiosidade superando o medo, ele correu o mais rápido que podia – apesar da falta de ar que sentia, apesar do cansaço que o abatia – para retornar ao local onde tinha visto a estranha e bela aparição. Por sorte, ela ainda estava lá.

– Não tem problema. Eu precisava acordar mesmo. ­

A jovem elfa de longos cabelos brancos, diáfano traje cor-de-rosa e doces e hipnóticos olhos azuis demorou um pouco para entender que Heron estava respondendo à pergunta que ela lhe fizera antes que ele saísse correndo como um camponês medroso. Pode não ter sido o mais inteligente a se dizer, mas foi a única coisa em que ele conseguiu pensar para quebrar o gelo.

Depois desse começo meio estranho, a conversa entre os dois começou a fluir. Ele descobriu que o nome da elfa era Prímula, que ela vivia ali desde sempre e sempre o observava em suas introspectivas andanças pela floresta. Ela não precisou dizer que o observava pois tinha por ele uma paixão platônica – seu olhar comunicava a Heron mais do que qualquer olhar humano já havia comunicado, mesmo com o brilho que o amor verdadeiro traz à íris de cada um de nós. E ele entendeu, naquele olhar, que estava destinado a ficar com ela, e amá-la como nunca havia amado uma garota humana. Mesmo não entendendo bem porque uma criatura tão bonita e doce iria se apaixonar por um rapaz introvertido como ele.

Depois disso, Heron passou a sempre visitar sua querida Prímula na floresta; ele não podia passar um dia sem deixar sua alma se perder na doçura dos olhos dela. Quando sua idosa mãe se foi, ele resolveu se estabelecer definitivamente na floresta. Sua amada conseguiu que ele fosse acolhido em Liltith, a vila élfica em que nenhum camponês havia entrado. Ali eles foram felizes até o “para sempre” de Heron, que ficaria eternamente sendo a lembrança mais feliz da imortal Prímula.

E se zumbis invadissem o metrô de São Paulo?

1

Eu nunca pensei que a existência de zumbis fosse provável. Ou pelo menos possível. Para mim, essas criaturas sempre estariam restritas à ficção de horror que eu e meus amigos assistíamos no Cine Trash.

Descobri que estava errado da pior forma possível, em uma estação de metrô infestada por seres decrépitos vindos dos piores pesadelos de George Romero. Tudo começou com o boato de que uma nova droga estava sendo vendida em São Paulo, uma substância mais viciante que o crack, cujos efeitos colaterais eram, naquela época, ainda desconhecidos. Uma incerteza que durou pouco tempo, se esvaindo à medida que os viciados começaram seu vagar de modo errante pelas ruas, suas peles ensanguentadas pontuadas por feridas enormes.

A situação, naquele momento, ainda estava sob controle. Os viciados ficavam pelos cantos, não incomodavam quem passava pelas ruas. Mas, exatamente no dia 06 de agosto, algo mudou. Como se um chamado demoníaco tivesse saído diretamente do além para suas mentes, essas criaturas iniciaram um comportamento totalmente novo, como se sua programação interna tivesse saído da hibernação, e os seres horripilantes começaram a caçar e matar pessoas.

Nesse dia, eu estava despreocupado, fazendo compras no centro de São Paulo. Já estava começando a anoitecer e uma chuva fina deixava o chão bastante escorregadio – algo ruim quando, aparentemente do nada, centenas de pessoas começaram a correr na minha direção, fugindo de alguma coisa. Alguma coisa que eu nunca mais vou esquecer.

Centenas, milhares de seres que um dia haviam sido humanos, correndo em nossa direção com ar faminto e desesperado, seu sangue deslizando por decrépitas feridas negras. Aterrorizadas, as pessoas corriam deles, caíam, eram pisoteadas e depois devoradas pelas assustadoras criaturas.

Corri o mais rápido que pude em direção à estação São Bento. Eu e milhares de outros cidadãos nos desesperamos em direção ao subterrâneo onde, talvez, encontraríamos abrigo das ferozes criaturas que não compreendíamos. Eu e milhares de outros estávamos errados.

A plataforma da estação estava escura, apenas com suas luzes de emergência ligadas. Ao que parecia, a energia dos trens havia sido desligada em função de pessoas que tentaram fugir pelos trilhos. A circulação de trens está paralizada, dizia o funcionário no alto-falante.

Para nossa surpresa – e do próprio funcionário – um trem apareceu, lentamente e sem qualquer iluminação, no final da plataforma. Fiquei me perguntando como ele poderia se mover sem energia, quando finalmente compreendi: milhares de zumbis, andando pela linha do metrô, empurravam para frente aquela composição que, para eles, não parecia ter o peso do aço usado em sua montagem. Ao chegar na estação apinhada de gente, eles se separaram e começaram a atacar, com doentia ferocidade, todos os cidadãos que esperavam escapar, debaixo da terra, às criaturas que já dominavam a parte de cima da cidade.

Aterrorizado, busquei um lugar para me esconder. Subi correndo a escada e olhei em volta por alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse servir como refúgio. Uma das máquinas de recarga, daquelas bem grandes, me pareceu a melhor ideia. Chutei a portinha lateral da máquina com a maior força que pude reunir até que ela abrisse e me escondi dentro dela.

Eu sentia dor por ser comprimido, mas imaginava que ali os zumbis não teriam a esperteza de procurar (afinal, nos filmes eles não são mesmo muito inteligentes). Estava escuro e eu mal podia respirar, mas tentei ficar bem quieto enquanto as terríveis criaturas atacavam todas as pessoas na estação.

Eu ouvia gritos de terror, gemidos de dor e ganidos de desespero por todos os lados. O tempo passava mais devagar que o normal, o medo tomava conta de mim e a cada grito que eu ouvia parecia que aquele era sim o dia em que eu morreria, e de um modo extremamente bizarro e doloroso.

Os gritos de intensificavam, e pelo barulho parecia que algumas pessoas estavam tentando se abrigar na bilheteria. Torci para que tivessem conseguido se esconder no vidro blindado, e me recriminei por não ter sido esperto o bastante para pensar nisso.
Os ruídos foram ficando mais fortes, mais altos e mais aterrorizantes, misturados aos gritos que eu nunca esquecerei. O som dos passos dos zumbis foi chegando muito perto, e senti que um deles chegou perto de mim. De repente, ele começou a sacudir a máquina até conseguir me pegar.

Quando a criatura nojenta me pegou, o medo foi tanto que passei mal e quase cheguei a desmaiar. Fui mordido pelo zumbi e a dor foi tanta que pensei que estaria no céu (ou no inferno) no momento seguinte. Eu teria ido, não fosse por uma mulher de preto que deu uma tonfada no ex-humano, e me arrastou até a bilheteria.

Depois disso não sei bem o que aconteceu até acordar numa cama de hospital. Descobri, mais tarde, que tinha passado vários dias lá, que a moça que me salvou era uma agente de segurança da estação e que o Instituto Butantã havia desenvolvido um soro de emergência que anulou o efeito da praga zumbi.

Infelizmente, muitas pessoas morreram ou perderam partes do corpo enquanto os zumbis dominaram a cidade. Já eu, tive sorte, muita sorte. E sabe aquela agente de segurança da estação? Vamos nos casar na semana que vem.