Numa noite sem lua de uma sexta-feira em 2006, Felipe dorme sem saber do estranho encontro que teria assim que o relógio marcasse zero hora. No momento da virada de data, as cortinas de seu quarto de moleque balançam com um vento frio que não deveria estar lá. A janela está fechada e tem grades; moramos em São Paulo, sua mãe dizia, não na Suécia. Nada de janela aberta. E se alguém entrasse para pegar seu computador ou seu iPod genérico da Santa Efigênia?
Indiferente a tudo, ele seguia sonhando com a Emanuelle… Felipe sempre amou a Emanuelle. Um dia, quem sabe, ele poderia se encontrar com ela – ou melhor, com atriz que a interpretava na Tv e em seus sonhos adolescentes.
A janela se abriu sem fazer ruído, e alguém passou por ela. Se sua mãe tivesse visto, teria gritado e tentado proteger Felipe. Ela sempre tentava proteger seu menininho de 17 anos. Proteger de qualquer coisa – mesmo das coisas boas, ele pensava.
Porém a pessoa que passou pela janela não era coisa boa. Tinha corpo de mulher, mas não era a Emanuelle, como Felipe sonhava. Era uma mulher diferente. Uma mulher cheia de vingança.
Felipe sentiu os longos cabelos lisos da estranha roçarem seu rosto. Fazia sentido com seu sonho, e ele não acordou. E ainda suspirou:
– Ah, Emanuelle!
A estranha de pele muito branca, vestido longo branco e cabelos negros quase tão longos quanto, decidiu acordar Felipe dando um tapa na cara dele.
– Ahhh!!! Mas o qu…
Não terminou a sentença. Ela segurou sua boca e mandou que se calasse. Sua voz era quase um sussurro gutural. Seu rosto e braços tinham cicatrizes que pareciam feitas por arame farpado.
– Você não compartilhou, Felipe. Eu sei que não.
Confuso, Felipe apenas observou a estranha criatura.
– Você leu, Felipe. Você leu até o final. Você soube o que aconteceu comigo. Você não compartilhou.
A mulher removeu a mão que segurava a boca de Felipe a colocou, junto com a outra, no pescoço do adolescente. Felipe mal conseguia respirar, mas ela ainda não o estava estrangulando para que morresse. Ela ainda tinha muito a dizer.
– Eu sou Samara. Você leu a minha história. Você leu.
Samara começou a apertar mais forte a garganta do rapaz. Felipe engasgava tentando descobrir o que ele tinha lido que teria afetado aquela mulher. Piadas? Os livros da Fuvest?
– Estava numa comunidade – ela disse – Estava lá no Orkut, que você entra para ver cinco vezes por dia. Estava tudo lá. Como eu gostava de andar de bicicleta em Cascavel. Como caí no arame farpado. Como o dono do lote ficou rindo me vendo agonizar. Você leu. Leu tudo. Era para mandar para 20 comunidades. Para salvar minha alma. Você não quis. Agora vai pagar pelo seu egoísmo.
Samara soltou as mãos do pescoço de Felipe. Aliviado e tossindo, recém caído no chão do quarto, o rapaz não percebeu que o cabelo da moça crescia. Crescia tanto, aliás, que suas ondas começaram a cobrir o piso de madeira e os cobertores da cama. Logo tudo parecia com um enorme tapete peludo, um breu de fios que consumia o quarto.
O cabelo de Samara era uma arma. Qualquer um perceberia isso. Mas Felipe estava muito ocupado tentando respirar para notar quando os longos e negros fios o envolveram. Eles não eram macios, como era de se esperar; sua textura lembrava o arame em que a vingativa moça teria sido morta. Aquele cabelo todo o engoliu. Quem abrisse a porta, naquele momento, não veria mais Felipe, apenas uma mulher fantasmagórica e cabeluda.
Ela não ficou tão cabeluda por muito tempo. O cabelo logo se retraiu para o tamanho original, mas Felipe não voltou a aparecer.
Samara riu.
– Esse foi rápido. Quem será o próximo? – perguntou, enquanto retirava um papel de debaixo da saia do alvo vestido. Leu seu conteúdo em silêncio, depois resmungou – Mariana, IP 129.321.14.14. Você também não compartilhou.
E desapareceu no ar, à procura de sua próxima vítima.